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terça-feira, 23 de novembro de 2010

"Sobre o alucinado ofício do jornalismo"

Entre os últimos livros que eu comprei está "A arte de Fazer um jornal diário", do Ricardo Noblat. E logo no início, a epígrafe, de Gabriel García Márquez, me chamou a atenção. Reproduzo abaixo, o trecho:

"Pois o jornalismo é uma paixão insaciável que só se pode digerir e torná-lo humano por sua confrontação descarnada com a realidade. Ninguém que não a tenha sofrido pode imaginar essa servidão que se alimenta dos imprevistos da vida. Ninguém que não a tenha vivido pode conceber, sequer, o que é essa palpitação sobrenatural da notícia, o orgasmo das primícias, a demolição moral do fracasso. Ninguém que não tenha nascido para isso e esteja disposto a viver só para isso poderá persistir num ofício tão incompreensível e voraz, cuja obra se acaba depois de cada notícia como se fora para sempre, mas que não permite um instante de paz enquanto não se recomeça com mais ardor do que nunca no minuto seguinte."


Preciso dizer mais alguma coisa?

sábado, 6 de novembro de 2010

Tão longe e tão perto

As pessoas se habituam a ver nos telejornais, ler nas revistas e periódicos muita coisa triste. É triste saber que alguém do outro lado do país foi assassinado, causa indignação ver famílias que tem suas casas invadidas. As agressões são revoltantes, as doenças te fazem refletir. Mas são coisas de momento, afinal, você não tem nada a ver com isso. Não são teus pais, familiares ou amigos que passaram por aquilo, são apenas desconhecidos. No entando, chega um dia em que você entra em casa, está tudo "revirado" e ainda percebe que estão faltando algumas coisas. Investiga um pouco, e descobre que foi alguém muito próximo à você que fez aquilo, alguém você vê no outro dia de manhã e é obrigado a desejar um bom dia, como se nada tivesse acontecido. Ou então seu pai chega em casa e conta que, aquele cara que um dia te apresentou os Mamonas, um parente distante, foi assassinado com um tiro nas costas, e nada é feito. Chega o dia em que, aquele vizinho drogado, tenta esganar uma pessoa da sua família, só porque ela estava tentando ajudá-lo. Um dia você acorda no mundo real. Chega o dia em que é preciso enfrentar a realidade.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

A mitificação do gaúcho

Em meio a uma arrumação no meu quarto, encontrei um recorte de jornal, o qual eu guardei para reproduzir aqui no blog. Ele fala sobre a história do gaúcho, como o gaúcho se vê e o que ele realmente é. Ótimo texto, de Dilan Camargo.



O texto abaixo foi publicado no dia 20 de setembro deste ano,  na Zero Hora.

Como ser histórico, o gaúcho é o tipo humano surgido da fusão das populações originárias do Pampa, os indígenas ( Charruas, Minuanos ) e os portugueses e espanhóis ( soldados, marinheiros, aventureiros ) dos desgarrados de todo tipo. Não tinham propriedade, família, nem endereço fixo. Nômades, assim como os indígenas. Carregavam o que precisavam no lombo de um cavalo. O gaúcho rio-grandense é o ser antropológico resultante de um período evolutivo de três séculos, nesta região meridional. 1600 – Missões Jesuíticas / 1700 – Povoação Portuguesa. E, especialmente, 1835, com a Guerra dos Farrapos. Nesse período deu-se a fusão definitiva do “campeiro-soldado”. Um homem que precisou lidar com o gado e ao mesmo tempo lutar com as armas.

Hoje, esse gaúcho é o campeiro, o peão de estância. Sobrevive também nos arrabaldes, nas cercanias das cidades, principalmente nas da fronteira-oeste. Esse é o chamado “gaúcho-a-pé”, que vendeu os arreios, perdeu o seu cavalo, e teve que sobreviver aprendendo a fazer de tudo, mas que mantém intacta uma alma e um modo de ser. Foi retratado magistralmente na trilogia de Cyro Martins. Ainda conserva algumas das características típicas dos indivíduos do campo, mas que já sofre o assédio cultural da globalização, primeiro através do radinho de pilha, e agora pela onipresença da televisão.

Sem o Pampa, o gado, o cavalo, as estâncias, e as guerras, ele não existiria. Constituiu a sua natureza original e proveu sua forma de subsistência antes ainda do cercamento dos campos. Um viramundo, um vagamundo. Forjado pelos ventos frios do inverno e pela exuberância pastoril da primavera. Um general latino-americano disse que “nenhum homem é prudente montado num cavalo”. Ver as paisagens e o mundo em cima de um cavalo tornou-o altivo e auto-confiante, desafiador do destino.

Nessa relação com a natureza e os animais, ele formou os traços particulares do seu caráter. Um forte individualismo. Uma autonomia de espírito e firmeza de convicções. Senso agudo de liberdade. Recatado e de poucas palavras, mas sentencioso e sábio. Expansivo nos momentos de alegria ingênua e singela. É dono de um linguajar metafórico. Faz poesia ao falar. Exímio cavaleiro, qualidade que herdou dos indígenas. Sua vestimenta original ( que hoje chamam de indumentária ) era pobre e simples, e não com tantos adereços, como as que hoje alguns se pilcham de gaúcho.

Já o gaúcho-mito é a representação construída do gaúcho. E aí entramos no terreno minado pela ideologia. Há o tipo gaúcho. O tipo humano, com suas qualidades e defeitos. E há o estereótipo, construído pela representação ideológica do gaúcho conforme interesses históricos determinados. E o mito por excelência, é o do gaúcho adâmico. Uma imagem mítica, projetada na figura difusa de um primeiro gaúcho, fundador da raça humana. Conseqüência disso, é a mitificação do passado e do próprio presente, sempre heróico e grandioso. Há toda uma mitologia de fundação do mundo e uma celebração do “ser gaúcho”, mitificada, irreal, idealizada. Infelizmente, é o que acorre com o belo e já clássico poema “Eis o homem”, escrito e recitado por Marco Aurélio Campos, que conclui com estes versos: “Sou maior que a história grega. Sou gaúcho e me chega / pra ser feliz no universo”. Há um visível exagero nessa atitude, além de uma injustificada demonstração de incultura, ao elevar as façanhas dos gaúchos acima da história grega, o que por sinal, também está na letra do hino rio-grandense. Qual a necessidade social e cultural dessa postura? No contexto da cultura universal ela cumpre um papel obscurantista e se dilui na jocosidade de uma bravata.

Então, deveríamos livrar-nos de nossos sentimentos gaúchos? Não. Mas também não podemos, como disse Hélio Jaguaribe sobre os indígenas brasileiros, querer isolar “o gaúcho” num jardim antropológico, cultuá-lo num estado primitivo e sem perspectivas humanas na vida contemporânea, mantendo-o no altar da “santa ignorância”.

Há um sentimento gaúcho, sim, que ecoa em nós. Vem desses longes, e de repente nos toca quando ouvimos um ponteio de milonga, quando chora uma cordeona, no canto de um quero-quero, ao redor de um fogo-de-chão, no olhar encantado para a vastidão do pampa, nas vozes do minuano. Nesses momentos, nosso coração é gaúcho e universal. Para isso, não precisamos novamente inventar a roda e nem cultuar a tradição como um ponto de chegada, mas sempre de partida.

Texto de Dilan Camargo - Escritor, cientista político