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sexta-feira, 5 de julho de 2013

O amigo da tia Nair

Nunca mais vi a tia Nair pela janela. Todo dia, quando passava pela casa, olhava pela mesma janela de antes, mas não a via. As duas camas sempre estavam vazias. 'Que bom', eu pensava. 'Sinal de que todos estão bem e com saúde'. Hoje, como em todos os outros dias olhei pela janela. Primeiro para a cama do fundo, onde costumava ficar a tia Nair e mais uma vez não vi ninguém. Depois, o olhar seguiu para a cama da janela, onde repousava um senhor de cabelos brancos com uma sonda no nariz. Não sei se ele e tia Nair se conheceram. Não sei há quanto tempo ele chegou na casa. Mas sei, mesmo sem conhecê-lo, que  o recorte de mundo que ele enxerga pela janela é maior do que o enxergado pela tia Nair. Compreendi, que nesse estágio da vida, tudo o que ele vê do mundo é delimitado pelo tamanho da janela a beira da sua cama.

domingo, 30 de junho de 2013

Velhice

Quando a pele ainda era rígida e lisa e os cabelos brancos ainda não tinham dado as caras, eles se conheceram e namoraram. Mas  Helena se apaixonou por outro, Antônio, e Waldir ficou tristonho por ver sua amada casar. Ela, por sua vez, apresentou uma prima para ele, com quem Waldir se casou. Foram casados e felizes por muito tempo. Mas o tempo, esse traiçoeiro, sempre passa. Quando finalmente os cabelos brancos chegaram, a pele não era a mesma, e as dificuldades de locomoção e os problemas auditivos chegaram, ambos ficaram viúvos. E foi na velhice que eles se reencontram, apesar de nunca terem se separado em função dos vínculos familiares. Há um ano, eles completaram seus respectivos 80º aniversário juntos, mais uma vez como um casal. Engana-se quem acredita que a velhice e tudo o que vem junto com ela os atrapalha. O aparelho auditivo de Waldir o auxilia a ouvir quando Helena o chama, frequentemente pelo nome do falecido marido, Antônio. "Ele não se importa, eram muito amigos", justifica ela em meio à gargalhadas. Casaram de novo, depois de bem velhos, pois "quem mora junto e não casa não vai para o céu", acredita Helena. O fato é que em meio a não-aceitação familiar, a troca de nomes, surdez e velhice, eles proporcionam um ao outro qualidade de vida. Eles são, um para o outro, tudo aquilo que se espera enquanto a morte não chega.

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Aprender

Com criança, sempre se aprende. É só observar bem. Aprendi o que é amar incondicionalmente e a reciprocidade disso. Aprendi que matemática pode ser divertido, mesmo que se tenha 5 anos de idade. Aprendi que cafuné consola e chá de camomila acalma, em meio a uma crise depressiva. Aprendi que crianças podem ser mais fortes que os adultos. Aprendi que o Benjamin Franklin criou as lentes bifocais. Aprendi que crianças tem QIs altíssimos e que não é fácil, nem pra elas, nem pra nós, lidarmos com isso. Aprendi que a vida é movida a desafios. Aprendi que não se pode concordar com algo simplesmente por que ele está posto. Aprendi a ser mais justa, a me preocupar mais com o outro, a apenas cobrar aquilo que realmente colocamos em prática. Há onze anos eu aprendo um pouquinho todo dia, com um menino que sonha em ser cientista, que me faz acreditar em um futuro melhor pra sociedade. Um menino que do alto dos seus 9 anos me ajudou a superar uma crise, com o seu cafuné e chá de camomila. Um piá que não apenas observa o mundo, mas nos faz observar e refletir com ele o porquê das coisas serem como são e da real necessidade disso.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Morte

Ninguém quer ver a morte de perto. Mas ela sempre chega, às vezes sem avisar, outras fazendo muito barulho. Naquela tarde, deitado em uma cama de hospital, ele não queria mais viver. Lutava para tirar o tubo de oxigênio que o mantinha vivo. Estava consciente. Mais consciente, talvez, que os três filhos e os dois netos que estavam no quarto. Seguravam suas mãos, para impedi-lo de retirar o respirador. Se morrer é difícil, ver alguém partir e não poder fazer nada, é mais ainda. Ele, com seus mais de 90 anos bem vividos, dizia, embora não muito claramente, "me deixem morrer". Todos fingiam não entender. Muitos fingem até hoje. Enfermeiros e médico vieram, para levá-lo de volta a UTI. Estava muito agitado e com dificuldade para respirar, apesar do aparelho. O coração já dava sinais de que estava indo. A correria foi em vão, as tentativas de reanimar o coração também. Ele se foi, e a notícia foi dada assim, num corredor frio de hospital. A última frase que eles lembram de ouvir dele foi me deixem morrer.

domingo, 9 de junho de 2013

Super-herói

Da noite para o dia ele teve a certeza que era um super-herói. Afirmava que o planeta corria risco de não existir mais, que as pessoas passariam por um grande sofrimento. Dizia que o mal estava prestes a vencer o bem e que ele era o único que poderia fazer algo para mudar. O super-herói ficava aflito, chorava. Deixou de fazer coisas que gostava por medo que aquilo fosse desencadear uma batalha entre o bem e o mal. Não era sonho, nem ficção. Também não era realidade. Ninguém sabia do que se tratava. A única certeza era que o super-herói era uma criança. Uma criança que queria salvar o mundo.

sábado, 8 de junho de 2013

Visitas

Gosto de visitar o passado. Com frequência. É uma visita diferente, não preciso bater na porta nem anunciar a minha chegada. Tenho a chave. Pego ela e abro a porta lentamente, espio para dentro e tento algo diferente. Algo que eu não tenha notado nas outras visitas. Ir até o passado é buscar repostas para o presente e, frequentemente, não achá-las. Ou talvez achá-las logo, bem ali, atrás daquela frase dita. Ás vezes as repostas ficam muito bem escondidas no passado e é difícil achar. É preciso procurar bem, talvez elas esteja embaixo de algum sorriso ou lágrima. É provável que esteja escondidinha, lá atrás daquela escolha.

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Desisti


Pela milionésima vez, hoje, desisti de ti. Não vou mais insistir em algo que não existe. Não quero os restos do teu precioso tempo. Quero poder passar horas jogando conversa fora, falar bobagem e não sobre os aspectos político-sociológicos da humanidade. Já vi esse filme. Vi tu simplesmente, da noite para o dia, parar de falar com alguém. A história se repete? Não sei.

Pela milionésima vez, hoje, desisti de ti. Amanhã, pela milionésima vez vou esquecer que desisti.

domingo, 19 de maio de 2013

O porquê

Um dia vou entender o que aconteceu com nós três. O que fez com que nos aproximássemos tanto, com que nos amássemos tanto. Vou compreender o porquê de tanta familiaridade, apesar de todos os pesares. Um dia vou entender o porquê de toda aquela necessidade de expor nossos sentimentos para o mundo, o que inclui uma certa revista de circulação nacional. Procuro entender, também, de onde tirávamos tanto tempo para conversar sobre o nada, sobre bobagens ou sobre a sociedade hipócrita em que vivemos. Talvez um dia eu entenda a necessidade de estarmos perto um dos outros, mesmo esse perto sendo bem relativo. Mas tem algo que, talvez, eu já entenda: a falta de assunto de hoje, a falta de familiaridade, o distanciamento (que fisicamente sempre existiu), quiçá a indiferença. E quando chegamos aqui, meus amigos, corremos um sério risco. A indiferença. Ela destrói aquilo que existiu um dia. Se isso vai acontecer? Aí vai depender do ponto de vista do articulista, o qual vocês conhecem melhor do que eu.

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Um perna de pau



Nunca vi ele jogando futebol. Mas já vi ele construindo suas pernas de pau e depois usando-as, nos seus bem vividos 75 anos. Não o conheci jovem, e sim correndo até o portão para me pegar no colo. Deixei de chupar bico em troca de uma boneca que ele me deu. Aprendi a jogar cartas, aprendi a me divertir, aprendi a tolerar. Tudo com ele. Vi ele no hospital, mais de uma vez e, depois, usando as pernas de pau. Vi ele carregando sua bolsa de viagem na rodoviária, embarcar no ônibus e ir para o sítio. Vi ele abatido, desanimado. Vi ele perder sangue, o estômago - todo o estômago. Vi ele perder muito peso. Agora eu vejo ele sentindo fome, e isso é tão bom. Vejo ele levantando de madrugada para comer. Vejo ele voltando a pegar a bolsa de viagem, embarcando no ônibus e retomando a vida. Aos 80 anos, depois de perder mais de 20 quilos, vejo ele voltando a viver.

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Na geladeira

Lembranças são lembranças. Não precisam de lugar físico, como uma foto, para existirem. Mas hoje lembrei dela, ao ver uma foto no facebook. Lembrei dos poucos momentos que tivemos e do prazer de conhecê-la antes que ela partisse. Apesar de lembranças não precisarem de lugar, essa tem. E tá na minha geladeira. Ou melhor, na porta da minha geladeira. Toda vez que eu paro na frente e vejo aquela boneca de pano, com um vestido verde e cabelos vermelhos eu lembro dela. Da força e da sensibilidade. Lembro de um tempo que não deveria ter passado.

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Tempo

Nunca vou aceitar o que o tempo faz com a gente. E isso nada tem a ver com envelhecer e todos os seus aspectos. Eu nunca vou aceitar o fato de o tempo nos separar de pessoas e lugares.




terça-feira, 9 de abril de 2013

Relógio

Você olha o relógio e percebe que já deveria ter saído de casa. Sai apressada pensando que vai perder o ônibus. Desce as escadas. E parado na frente da porta, interrompendo a saída, está o teu vizinho do primeiro andar, com uns 55-60 anos, deficiente físico. Você cumprimenta e acha uma forma de passar. Ele pede ajuda. Você pensa no horário. Estava atrasada, lembra? Olha para ele, tão frágil, com suas muletas, tentando subir na cadeira de rodas motorizada. "Querida, pode me ajudar? Tira a capa da cadeira para mim?". Você ajuda e pergunta se ele precisa de mais alguma coisa. Esquece o atraso, os supostos problemas e pensa em como a vida nos prega peças. "Não precisa de mais nada, meu anjo. Já foi uma baita ajuda". Você se despede. Lembra do relógio e volta a correr. Perde o ônibus, mas isso já não importa mais.

segunda-feira, 8 de abril de 2013

A camiseta


Era um estranho, mas vestia algo bem familiar. Era um estranho, mas possivelmente tinha passado pela mesma experiência. Era um estranho, mas com certeza um sonhador. A camiseta que ele usava não era exatamente igual a minha, mas quase, não fosse a barra cor de laranja nas mangas e na gola. O laranja. Já disse que minha memória tem cor? É cor de laranja.
Não conseguia desviar os olhos da camiseta. Não conseguia desviar os olhos dele. Consegui, apenas por alguns segundos, reviver aqueles bons momentos.

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Somos todos culpados

"Alguém tem que ser o culpado", diria minha mãe. E começa o jogo de especulações, empurra para lá e para cá. Culpa-se quem está mais próximo, àqueles que aparecem em ênfase num primeiro momento. Peguemos como exemplo o incêndio na boate de Santa Maria. As pessoas julgam e condenam o músico que usou o tal sinalizador, os seguranças, os donos da boate. Cada um deles pelos motivos que todos nós já conhecemos. Depois começa-se a falar nos bombeiros, nos fiscais, na prefeitura, no poder público. Culpa-se o responsável disso ou daquilo. Você já parou para pensar que também é culpado? Sim, se essa bola de neve de culpados não pára, chegamos a nós, cidadãos. Você se considera um cidadão? Se sim, também é culpado. É culpado porque elege os governantes que dão toda a sequência aos milhares de profissionais que de uma forma ou de outra erraram ou foram negligentes, é culpado porque não cobra nada do tal poder público, não corre atrás dos direitos e, consequentemente não cumpre seus deveres. É culpado porque também negligencia, fecha os olhos e prefere não ver. É culpado porque aplaude coisas ilegais. Não? Então quer dizer que você pagou pelas músicas que tocam no seu mp3, que nunca recebeu troco a mais e ficou quieto? Talvez você me diga que uma coisa não tem nada a ver com a outra, mas tem. Eu já usei a expressão "não dá nada". Não faço cobranças ao poder público, não fiscalizo nossos representantes, não lembro em quais deputados eu votei na última eleição. Já julguei as pessoas por elas errarem, por não serem honestas, por não fazerem o seu trabalho. Mas eu não fui 100% honesta sempre. As proporções, claro, são diferentes. Mas lá no fim do fio da meada eu sei que eu e você temos culpa. E eu me sinto um pouco culpada por querer justiça depois e não antes.

domingo, 20 de janeiro de 2013

Queridas amigas (?),


Antes de mais nada, que falta eu sinto de vocês. Das nossas tardes jogando conversa fora.
Resolvi escrever pra vocês depois de ver um comentário em uma foto nossa. Algo como "bons tempos que não voltam mais". Sabe, até pouco tempo eu pensava assim. Lembrava daquele tempo como algo que não pode voltar mais. Mas hoje, especialmente hoje, eu comecei a pensar diferente.
Antes, eu lembrava da nossa amizade com muito carinho, por um lado, mas com um pouco de tristeza por outro. Pensava: como algo que era tão bacana pode "acabar" de uma hora para outra?
Depois repensei. Comecei a lembrar da nossa amizade apenas com carinho. E passei a pensar: as pessoas mudam, a vida muda e por consequência a amizade muda também. Nós quatro passamos por experiências diferentes nesses últimos anos e, não sei se vocês lembram ou se sentiram assim, mas a última vez que nos reunimos não foi a mesma coisa de antes. Não tinha o mesmo entrosamento.
O momento não tá fácil. E aí, entre tantas reflexões, eu vejo que o culpado desse nosso afastamento não é o tempo, ou a vida. Somos nós mesmas. Se quisessemos, de verdade, poderíamos continuar nos encontrando quase como antes. É fácil reclamar que alguém sumiu ou que não se tem mais amigos como antes e não fazer nada para mudar.
Claro que com cada uma de vocês é diferente. Claro que não vai ser igual, afinal tudo muda. Mas quem disse que não pode ser melhor?
Mas afinal, por que não procuramos umas as outras? Arrisco responder. Nós mudamos. Nesses quatro anos escolhemos nossos próprios caminhos, conhecemos pessoas diferentes, fizemos novos amigos e começamos a ver o mundo de outras perspectivas. O meu palpite é que temos medo que não haja mais afinidades, que não haja mais sonhos compartilhados. E, assim, de certa forma, que não sejamos mais aceitas de braços abertos.
Para descobrir isso é preciso arriscar. Arriscar a ver um rosto sério ou uma desculpa qualquer para não nos vermos mais e aí sim perceber que não há mais jeito, que o jeito é continuar lembrando de nós como algo muito bom do passado. Lembrar de vocês e contar para meus filhos como era divertido dividir segredos, sonhos e medos.

Eu topo nos dar uma segunda chance. E vocês?

Com carinho, eu.